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Trabalhador rural vítima de trabalho escravo relata situação vivida em fazenda da família Quagliato, no Pará

Trabalhador rural vítima de trabalho escravo relata situação vivida em fazenda da família Quagliato, no Pará

Matéria divulgada pela Folha de São Paulo de hoje (13), traz o relato dramático,de Francisco das Chagas da Silva Lira, 38, que juntamente com outros 81 trabalhadores rurais, foi resgatado pela fiscalização do Ministério do Trabalho da condição análoga à de escravo em 2000. Ele limpava o pasto da fazenda Brasil Verde, em Sapucaia, no Pará, a 733 km de Belém, cujo proprietário era João Luiz Quagliato Neto. O caso foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional da OEA (Organização dos Estados Americanos), que condenou o Brasil por omissão e negligência aos trabalhadores.

Lunae Parracho/Reporter Brasil
Francisco Lira, 38, que foi escravo contemporâneo em fazenda no Pará, que pertencia a João Luiz Quagliato Neto

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Relato de Francisco Lira

O pior dia foi quando o fiscal (funcionário da fazenda) quis queimar o rapaz. Era madrugada, ainda estava preparando o café da moçada quando o fiscal perguntou de um dos nossos colegas. Éramos 12 trabalhadores rurais no grupo. Falei que o cabra estava mal, nem conseguia levantar da rede. Daí o fiscal ficou bravo.

Com um pedaço de ferro, pegou uma brasa e partiu para queimar o menino. Eu disse para ele: “Não leve, não. Se levar, você morre”.

O rapaz já era escravo, ainda ia ser queimado por um tição de fogo? Você não faz isso com ninguém, nem com bicho. Se machucasse um de nós, os outros iam reagir. E os fiscais tinham armas. Ia dar o pior de tudo. Ele deixou a brasa, mas foi até a rede e sacudiu para o cara levantar.

O convite para trabalhar na fazenda Brasil Verde, em Sapucaia, no Pará, partiu de Meladinho (apelido do aliciador que contratou os trabalhadores em outro Estado). Ele prometeu um salário mínimo (na época de R$ 151) para cuidar do pasto e do gado, com alojamento e equipamentos de trabalho.

Na necessidade, você aceita tudo. Fui para o mundo com outros desempregados aqui de Barras (PI). A intenção era mandar dinheiro para a família. Viajamos dois dias de ônibus e trem, sempre à noite. Quando chegamos na Brasil Verde, era tudo diferente.

O alojamento era um barraco de lona, sem paredes, fogão, banheiro, pia, luz elétrica. Não tinha nada. Um fiscal vigiava a gente o tempo todo. Às 4h da manhã, ele colocava os holofotes (farol) do carro dentro do barracão. Todos os dias, eu preparava o café da moçada. Se a gente não fizesse, não comia. Cansamos de andar até 20 quilômetros à pé para chegar ao trabalho, com chuva ou sem.

O mato não era baixo como o Meladinho tinha prometido. Era uma juquira alta (mato que cresce no pasto), serviço para trator. Um dos trabalhadores fez a conta: cada um de nós estava ganhando R$ 0,75 por dia.

Parávamos por volta de meio-dia para comer. Era arroz com mandioca, fria, sem gosto. Como a gente comia no tempo (à céu aberto), a água misturava na marmita. Nem tinha apetite para comer aquilo ali. Trabalhávamos até anoitecer.

Um dia, um temporal tomou o céu. Era uma chuva de raios. Eu e mais três roçávamos perto de uma cerca elétrica e decidimos retornar ao barraco, com medo. Eram 14h30. Mal entramos e o fiscal veio para cima.

Não adiantou explicar, o fiscal obrigou a gente a voltar. Deu o pior. Um trovão caiu perto da gente e cada um caiu para um lado. Nem sei explicar o que senti. O fiscal fez a gente levantar e retomar o serviço.

Teve dia que voltei para o barracão pisando com o calcanhar. Não sei se era umidade, calor ou alguma outra coisa, mas todos nós pegamos uma doença, a “rói-rói”, que dava uma coceira insuportável e comia a carne dos pés. Tinha dedo que ficava no osso. Mas não dava para reclamar. O que é um trabalhador na frente de uma arma?

Nunca disseram: “Rapaz, vocês estão trabalhando muito, vou valorizar o serviço de vocês”. Todo mundo precisa ser prestigiado.

RESGATE

Lembro que no meu último dia lá fiz um serviço ruim, que era roçar um mato muito alto. Já passava das 15h quando um fiscal veio dizer que a [Polícia] Federal queria falar com a gente.

“Vocês vão lá e, se perguntarem alguma coisa, diz que está tudo bem”. Na hora pensei: “Já sei por onde começar, a vez que quiseram queimar o menino”. Lembro também de ter falado: “Quero ir embora, não aguento mais”.

Os policiais chegaram até nós porque dois trabalhadores, de um outro grupo, apanharam dos fiscais na sede da fazenda. Por sorte, conseguiram fugir até a cidade e denunciaram.

A Federal levou a gente até o barraco num carro de boi, cheio de lama e fezes. Lá, disseram que não trabalhávamos mais na fazenda e que deveríamos ficar juntos até o dia seguinte, quando voltariam para nos buscar.

Eles precisavam acertar o transporte, acomodação e alimentação para 82 pessoas. Aconselharam a não sair do barraco e não andar sozinho, porque os donos poderiam querer se vingar. Você acha que alguém dormiu naquela madrugada?

Não era a primeira vez dos policiais naquela fazenda, contaram. Outros já tinham sido resgatados de trabalho escravo contemporâneo ali. Na época, em 2000, não tinha consciência do que era trabalho forçado, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva.

Já tinha ouvido falar de trabalho escravo na televisão, mas pensava que escravidão era castigo para quem faz mal ao outro. Mas não. Escravo é sofrer, passar fome, necessidade, ser mandado toda hora. Não quero uma vida de escravo para ninguém.

Processo e Condenação

A condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos), por negligência e omissão aos trabalhadores, foi a primeira vez que o tribunal condenou um país por trabalho escravo contemporâneo. Desde 1995, mais 50 mil pessoas foram resgatadas no país.

Na sentença, a Corte pediu ainda a reabertura do processo criminal, que envolve o dono das terras, o paulista João Luiz Quagliato Neto, até hoje um importante nome do agronegócio brasileiro.

“Temos a tradição de dar cumprimento à decisões da Corte”, diz Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, subprocuradora-geral da República. Em março ela deu encaminhamento à reabertura da investigação.

Em 1988, denúncia feita pela Comissão Pastoral da Terra ao governo brasileiro já falava do crime naquelas terras, onde se cria gado, e do desaparecimento de dois adolescentes.

Desde então fiscalizações da Polícia Federal e do Ministério do Trabalho encontraram violações trabalhistas na Brasil Verde –em 1989, 1993, 1996 e 1997.

Procurado, o advogado de Quagliato não se pronunciou até a conclusão desta edição. Em entrevista a esta Folha em 1998, o pecuarista negou a ocorrência de trabalho escravo na sua fazenda.

Leia o especial completo em reporterbrasil.org.br/brasilverde

 

A condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos 

 

Sessão do julgamento em fevereiro de 2016. CIDH

No dia 16 de dezembro de 2016, (http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/16/internacional/1481925647_304000.html) a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ditou a primeira condenação de um Estado por tolerar a escravidão em suas formas modernas. O Brasil foi considerado um violador das garantias trabalhistas de 85 trabalhadores que precisaram ser resgatados de uma fazenda no estado do Pará, no ano 2000.

16 anos depois, o tribunal continental de direitos humanos, em San José na Costa Rica, concluiu que o Estado brasileiro permitiu os graves abusos trabalhistas na Fazenda Brasil Verde e o catalogou como escravidão moderna e tráfico pelas condições indicadas em denúncias de 1989. Por isso ordenou que os trabalhadores fossem indenizados e as investigações internas fossem retomadas.

Os juízes da Corte determinaram que os camponeses foram recrutados em áreas pobres do Brasil, de onde viajaram para a fazenda Pará (uma área de 8.500 hectares dedicadas à pecuária no município de Sapucaia, do empresário João Luís Quagliato Neto na época dos fatos). Na fazenda a carteira de trabalho foi retida e foram obrigados a assinar documentos em branco. Além disso, eram forçados a trabalhar jornadas de 12 horas com apenas 30 minutos para comer os alimentos insuficientes e de má qualidade que, ainda por cima, eram descontados do pagamento. Dormiam em redes sem acesso à eletricidade ou assistência médica. Trabalhavam sob ameaças e vigilância armada, de acordo com a sentença.

Em 2000, dois jovens conseguiram escapar e forçaram uma inspeção trabalhista que comprovou os abusos, mas os culpados nunca foram castigados nem os agricultores foram indenizados, apesar dos relatórios posteriores da CIDH.

“Nenhum dos procedimentos legais em sede interna determinou algum tipo de responsabilidade, nem serviu para obter reparação às vítimas ou estudou a fundo a questão”, diz a sentença, segundo a qual isso acontece por uma “normalização” das condições desumanas em que trabalhavam muitas pessoas especialmente vulneráveis nos estados mais pobres do Brasil. Esses regimes de trabalho forçado em fazendas e minas foi combatido nos anos noventa e milhares de trabalhadores foram liberados, mas apenas o caso da Fazenda Brasil Verde chegou à Corte Interamericana. Também não é um problema que foi erradicado ainda. De acordo com a Corte, a escravidão moderna “se manifesta nos dias de hoje de várias maneiras, mas mantendo certas características essenciais comuns à escravidão tradicional, como o exercício do controle sobre uma pessoa através da coação física ou psicológica de tal forma que implique a perda de sua autonomia individual e a exploração contra sua vontade”.

Em razão das violações identificadas, a Corte ordenou a reabertura das investigações e o pagamento das indenizações correspondentes. Além disso, a CIDH instrui que sejam “adotas medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de direito internacional de escravidão e suas formas análogas”.

 

João Luiz Quagliato Neto responde a 77 processos trabalhistas

De acordo com os dados indexados: Joao Luiz Quagliato Neto possui 77 processos indexados. Com todos os seus processos no Estado de São Paulo. Desses processos, Fed.Emp.Rurais Assalariados do Estado de Sao Paulo foi a parte que mais apareceu, totalizando 2 ou mais processos, seguida por Ministério Público do Trabalho – Pj com 2 ou mais processos. Seu advogado(a) com mais processos aqui é Antonio Lino Sartori, com 27 processos, seguido por Rogerio Garcia Duarte, com 20 processos.

Dono de fazenda diz sofrer ‘injustiça’

Em matéria veiculada pela Folha de São Paulo em 24 de maio de 1998, (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc24059817.htm), João Luiz Quagliato Neto, se disse injustiçado pelo processo que apontou a existência de trabalho escravo em sua fazenda, em 1997. Leia a íntegra da matéria abaixo:
Denunciado pela procuradora da República em Marabá (PA), Neide de Oliveira, por reduzir trabalhadores à condição análoga à de escravo, o fazendeiro paulista João Luiz Quagliato Neto, 66, dono da Fazenda Brasil Verde (1.900 alqueires, 7.000 bois), em Sapucaia, sul do Pará, disse à Folha que está sendo vítima de “injustiça”.
“Na minha fazenda nunca houve trabalho escravo”, afirmou. Na denúncia, de junho de 1997, e ainda à espera de sentença, a procuradora afirma que a fazenda “aliciou peões” no Hotel Pires, de Xinguara, instalou-os em condições precárias e desumanas e, sob ameaça de morte com revólver, os impediu de sair da fazenda.
Quagliato está se defendendo -mas o fato é que desde o flagrante do Ministério do Trabalho, em abril de 97, a Brasil Verde mudou o modo de tratar os peões.
Passou a alojá-los em um barracão de madeira -antes eles ficavam em barracões cobertos de plástico e palha-, com cozinha, refeitório e banheiro.
“Agora eles têm tudo o querem”, disse à Folha o gerente Antônio Alves Vieira, o Toninho, igualmente denunciado pela promotora. Toninho também se acha vítima de uma injustiça.
Desde a visita dos fiscais trabalhistas, ele mudou o sistema de arregimentação dos peões. Agora manda buscá-los em Barras, no Piauí, por meio do empreiteiro Francisco Mesquita de Paula.
“O pessoal de lá é mais fácil de lidar”, diz Toninho. Ele paga R$ 7,00 por diária de um peão, da qual desconta os gastos com alimentação e outras despesas feitas na própria fazenda. Estima em 25% o gasto médio de cada peão.
Havia 69 deles quando a Folha visitou o barracão da Brasil Verde. Estavam ali, numa empreita de dois meses, para roçar 400 alqueires de juquira. Três entrevistados, na frente de Toninho, disseram que as condições de lá são melhores que as de outras fazendas, mas reclamaram do pagamento.
Francisco Alves da Silva, 43, mostrou as mãos ainda com feridas de um acidente no primeiro dia de trabalho. “Mas aqui tem remédio.” Os remédios, mostrados por próprio Toninho, ficam espalhados numa caixa de papelão no chão de um pequeno depósito.
Quagliato é um dos maiores fazendeiros da região, onde, diz, está investindo há 15 anos. Além da Brasil Verde, ele tem, com três irmãos, a Fazenda Rio Vermelho, igualmente alvo de denúncias de trabalho escravo ao longo dos últimos anos, todas elas rebatidas e não oficialmente comprovadas.
O fazendeiro não quis dizer à Folha o tamanho de sua propriedade. “Não me lembro”, disse.

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