Após 58 anos do golpe, Forças Armadas ainda atuam como “Partido Militar” no Brasil, diz dossiê
Paulo Motoryn
O protagonismo político das Forças Armadas é determinante para compreender o retrocesso nos direitos sociais e o avanço do neofascismo no Brasil. Essa é uma das conclusões do dossiê A questão militar no Brasil: o retorno do protagonismo dos militares na política, elaborado pelo Instituto Tricontinental, organização internacional que reúne movimentos populares e políticos da Ásia, da Africa e da América Latina.
O conteúdo foi elaborado por dois pesquisadores do Observatório da Defesa e Soberania Nacional: Ana Penido, doutora em Relações Internacionais; e Rodrigo Lentz, doutor em Ciência Política. Além da pesquisa, o material conta com ilustrações inéditas. Clique aqui para fazer download da íntegra do estudo, divulgado no início de março.
Os autores apontam que o material tem um caráter introdutório sobre o tema, já que também é direcionado a acadêmicos e especialistas estrangeiros. Penido e Lentz, no entanto, foram muito além dos elementos superficiais sobre o tema. Em 40 páginas, dissecam a história, o pensamento e a participação política dos militares brasileiros.
O dossiê aponta que os militares estão novamente sob os holofotes políticos nacionais, o que não ocorria com tanto destaque desde o fim da ditadura militar (1964-1985). Para explicar a atuação política das Forças Armadas, os autores abordam o conceito de Partido Militar.
Entre as reflexões trazidas pelos pesquisadores, estão elementos fundamentais para entender o papel dos militares no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Segundo eles, os fardados não são uma “ala” ou “setor” do governo, mas sim os “controladores” da máquina estatal sob comando do ex-capitão do Exército.
Penido e Lentz resgatam ainda o Gabinete de Intervenção Federal do Rio de Janeiro, em 2018, e sustentam que as milícias cariocas – que assassinaram a ex-vereadora Marielle Franco (Psol) e o motorista Anderson Gomes – são também um sub-produto da atuação política dos militares.
Em entrevista ao Brasil de Fato, os dois falam sobre a importância do dossiê, explicam o conteúdo e ainda fazem comentários sobre o significado da provável escolha do general Walter Braga Netto como candidato a vice na chapa de Bolsonaro para as eleições presidenciais de outubro de 2022.
Leia a entrevista completa:
Qual a importância da publicação do dossiê pelo Instituto Tricontinental?
Ana Penido: Esse é o 50º dossiê do Instituto Tricontinental. São dossiês construídos a nível global. Eu acho que essa é a primeira dimensão. A gente produziu esse dossiê pensando em um público que pode ter qualquer nacionalidade, em especial, dos países do Sul Global. Temos muitos leitores na Índia, na África do Sul, na China, além da própria América Latina. Os dossiês são pensados para esse público. Isso exige um cuidado de linguagem, porque algumas palavras não têm os mesmos significados em todos os países.
Uma segunda questão bem importante nos dossiês é que eles não são feitos para um público que é acadêmico. Embora ele tenha fontes, referências bibliográficas, dados, números, temos uma linguagem que é para uma pessoa comum, para a população de forma geral ter acesso. Acho que essas são duas questões são bem importantes para o dossiê.
Uma terceira é que o Instituto Tricontinental dá um peso muito grande para a questão das imagens. Esse é um material trabalhado graficamente. As imagens que foram usadas neles são inéditas, foram produzidas a partir do texto, em diálogo com ele. A capa é exatamente a mensagem que a gente queria trazer, de que o Bolsonaro não é uma coisa que surgiu do nada, que tem uma história por trás que de protagonismo militar no ambiente interno, de identificação de lutadores sociais enquanto potenciais inimigos que desestabilizam o país. Essa é uma característica muito importante de todas as cartas semanais do Instituto e também dos dossiês. A gente teve o privilégio de ter ilustrações no material e isso ajuda a funcionar.
Eu acho que a última questão é que os temas dos dossiês são definidos internacionalmente. Quando um assunto interno se torna objeto de um dossiê, é porque ele está chamando a atenção dessa esquerda global que se organiza ao redor do instituto e tem diálogo com instituto. A questão dos militares na política brasileira tomou uma proporção tão grande que passou, de fato, a preocupar organizações de esquerda a nível global. Foi aí que surgiu a demanda. Não é uma questão que nós propusemos. A gente já vem produzindo materiais sobre o governo Bolsonaro, sobre Forças Armadas, sobre estratégias, sobre guerra, sobre Defesa, para o Instituto, desde que ele começou a funcionar no Brasil. Mas, quando isso vira um dossiê, quer dizer que existe o interesse global por entender um pouco desse assunto. Isso mostra o tamanho do nosso problema também para podermos, não só explicar o que está acontecendo, mas tentar encontrar saídas, soluções e alternativas.
Como o conteúdo está estruturado no documento?
Rodrigo Lentz: Como a Ana mencionou, há um caráter introdutório no material. Tentamos, em primeiro lugar, fazer um resgate e uma contextualização histórica. Também colocamos a questão da organização das Forças Armadas, tanto no plano interno, como no plano externo, ressaltando que no plano interno é voltada para neutralizar as forças sociais que se opunham a essa ideologia conservadora e liberal que predomina historicamente no Exército e nas outras Forças. Nós também falamos um pouco de como há uma posição periférica dessas Forças Armadas e submissa ao imperialismo dos Estados Unidos.
Por fim, a gente também comenta os desdobramentos do contexto histórico e do perfil que perdura hoje em relação ao governo Bolsonaro, e também ao contexto Internacional com essa mudança da ordem global que está ocorrendo. Dialogando com as imagens, o que a gente está chamando a atenção que esse tema, a questão militar, não é um problema de especialistas e não é um problema especificamente de quem se preocupa com a guerra, é um problema cotidiano. Quando a gente menciona que as polícias militares são militares, significa que a própria segurança pública é completamente uma questão militar. E isso atinge diretamente as periferias brasileiras e os movimentos sociais. Os próprios jovens homens têm que se alistar quando fazem 18 anos. A militarização está nos nomes de ruas, é uma dimensão da sociedade, está na nossa cultura. Por isso que é uma questão importante e o caráter introdutório visa justamente facilitar a compreensão.
Logo na introdução, vocês trazem pela primeira vez ao documento o termo Partido Militar, que dialoga bastante com o título do dossiê, que cita “o retorno do protagonismo dos militares na política”. Como a gente pode definir o Partido Militar e explicar esse conceito?
Ana Penido: Esse é um conceito que, nesse documento, em particular, a gente usou de forma didática, como uma imagem. Mas temos outros textos que são mais conceituais, discutindo quando ele se formou, como ele se estrutura e, essencialmente, os impactos que ele traz na vida pública, no ponto de vista da militarização do Estado e da sociedade. Sendo breve, esse conceito surge no Brasil por parte de um autor conservador, que chama Oliveiros Ferreira. Na época, ele falava da existência de um partido fardado, usando essa imagem para pensar a participação política dos militares durante a ditadura militar. Ele se inspira naquela formulação tradicional do Antonio Gramsci, sobre o que que é um partido, no sentido de existir uma reunião de um conjunto de quadros, que fazem formação política, que indicam os seus cargos-chave nas estruturas do estado. Esse partido tem algum grau de projeto nacional, não necessariamente para o todo do país, mas pelo menos um projeto que atenda à sua própria base de reivindicação corporativa. Esse partido disputa as suas ideias no leito da sociedade. Quando o Rodrigo chama atenção para a militarização, por exemplo, falando das ruas e dos símbolos, ele aponta que há uma disputa de uma forma de ler a história, você disputa uma narrativa.
Um outro autor muito importante é um cara dos anos 30 que falava assim: “Olha, a gente tem que parar de ter a política dentro do Exército”. Ele dizia isso porque tinham disputas entre diferentes grupos. Se a gente olha para a história do Clube Militar, isso fica nítido. Aí o Góes Monteiro pega e fala assim: “Não. Agora, a gente vai começar a fazer a política do Exército. Não mais a política no Exército, mas a política do Exército”. Essa é uma primeira mudança. Durante o regime militar, a política do Exército, por causa de reformas na carreira militar, passa a ser feita só pela cúpula do Exército. Isso muda mais uma questão. Você não tem mais a política dentro do exército. Só uma política que é quase a política da instituição. As reformas fazem com que quem defina essa política é quem está no topo. Quem manda é general de quatro estrelas, no final das contas. Pode ter capitão dando opinião, capitão virando presidente, mas, quem manda é general de quatro estrelas. Os da ativa mandam mais que os da reserva, mas os da reserva também.
A noção de partido que a gente elaborou foi resgatada, em parte, desse autor e modificada. Até porque não fazia mais sentido falar em partido fardado se a gente não tivesse, por exemplo, os números da Polícia Militar porque, no Brasil, as políticas essa mesma estrutura militar. A gente usou o termo Partido Militar enquanto uma figura didática. Acho que tem um papel que dossiê tem que é de desmistificar algumas coisas para a população, que, muitas vezes, as pessoas pensam assim: “As Forças Armadas vão participar da política, então veremos os blindados lá na rua de casa, todo mundo armado, toque de recolher.” Mas, não. Esse é só o momento mais explícito e quase midiático de um processo de intervenção militar. A intervenção militar é contínua e rotineira. Ela é sutil, sorrateira e permanente. Por isso, que a gente usou essa metáfora dizendo: “Outros partidos políticos fazem a mesma coisa. O fato deles estarem de farda não faz com que eles não façam política. Eles fazem política assim como os outros”. Fizemos isso para falar com quem não é da área.
Mas há um cuidado muito importante que temos que ter que é uma tendência inversa. Não podemos achar que trabalhador vota em trabalhador, que liberal vota em liberal, que burguês vota em burguês. Não é assim que funciona. Militar tem arma, tem espírito de corpo e funciona com hierarquia e disciplina. Por isso, eles são vetados pela nossa Constituição de organização partidária. Então, é totalmente ilegal qualquer tipo de organização nesse sentido. Tenha ela ou não um registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Vocês falam em “retorno” do protagonismo militar. Houve um hiato em que o partido deixou de atuar ou representa apenas a volta aos holofotes?
Rodrigo Lentz: O termo “retorno ao protagonismo” foi um cuidado que a gente teve de não alimentar esse mito de que só com o bolsonarismo e Bolsonaro, os militares tenham se engajado na política. Como a Ana mesmo mencionou, os militares são envolvidos politicamente e estruturados a partir dessa organização metafórica, que é o Partido Militar. Isso é uma constante da história política da República. Na fundação da República, com o golpe republicano, tivemos dois governos ditatoriais que eram de generais do Exército. Depois, tivemos o Hermes da Fonseca sendo presidente da República Velha, a partir daquela daquele modelo eleitoral fraudulento. Depois, tivemos todo o Estado Novo que, se não era liderado especificamente por um militar, foi um governo extremamente militarizado e ordenado pelos militares. Depois da Constituição de 1946, o primeiro presidente foi um general do Exército, o Eurico Gaspar Dutra. E, em seguida, todas as eleições tiveram alguma liderança militar disputando as eleições, sem falar em senadores, deputados estaduais e federais, interventores nos governos estaduais e em empresas públicas. E, ainda, depois disso, nós tivemos 21 anos de governos liderados por generais. Esse interregno de 1985 até 2018, que nós não tivemos uma liderança específica na proa da política, ela de forma alguma significa que eles deixaram de fazer política, mas que mudaram a estratégia e a tática. Passaram a um papel de coadjuvante ou atuaram de forma sorrateira, informal e nos bastidores.
O que representa Braga Netto na vice? Como devemos olhar para essa figura?
Ana Penido: Braga Netto é o cara que tem o mapa da mina. É o cara que foi interventor federal no Rio de Janeiro. É o cara que o Bolsonaro agradeceu no dia da posse junto com o [ex-juiz Sergio] Moro e com o general Villas Bôas. Ele é o cara que literalmente sabe de toda a economia criminal do submundo do Rio de Janeiro. Tudo indica que ele tem relação com a economia que financiou as campanhas de vereador e de deputado do Bolsonaro e, depois, da sua família. Ele é o cara que tem o mapa da mina. É o cara do mapa da mina porque tem as informações que ele teve enquanto interventor, as informações que vem pela inteligência militar e agora no governo, inclusive, as informações que dá para levantar pelo próprio Gabinete de Segurança Institucional. E informação é poder.
Essa foi a primeira pergunta que a gente se fez: quem manda, no final das contas, nesse governo? E não há dúvidas que, pelo pacote de informações que o Braga Netto conseguiu reunir ao longo desse tempo todo, ele tem condição de ter o presidente na mão. Ele nunca foi um ministro qualquer. No próprio instituto, a gente mudou a nossa abordagem da questão quando ele se tornou ministro da Casa Civil. Porque, até então, a maior parte das matérias da imprensa tratavam os militares como uma “ala militar”. Desde quando o Braga Netto assume a Casa Civil muda completamente porque não existe mais uma ala. Ele tem muito mais informações do que o presidente sobre a própria vida dele, talvez. Fica muito nítido que os militares não eram só um grupo político para compor a base do governo Bolsonaro. A ida do Braga Netto para a Casa Civil expressa uma capacidade de coordenação dos militares sobre o governo Bolsonaro.
Rodrigo Lentz: Eu acrescentaria que o Braga Netto cumpre uma função na chapa melhor do que o Mourão para a coesão interna das Forças armadas, principalmente o Exército. Promove uma imagem de que a chapa é apoiada pelas Forças Armadas, que é uma chapa das Forças Armadas, que até o governo das Forças Armadas. Há essa função eleitoral, dessa coerção como moeda política e também como como agregadora de voto. Considerando que o Braga Netto, essa figura que tem o mapa da mina, é um ótimo representante, em uma hipótese que a gente tem trabalhado, de que as milícias cariocas sejam também um subproduto militar. Os dois que que estão presos e respondem pelo assassinato da Marielle Franco e do Anderson são militares. O assassinato da Marielle aconteceu justamente nos primeiros dias da intervenção federal. Há aí um simbolismo que envolve as milícias.
Por decorrência da saída do Braga Netto para a candidatura de vice, a mudança no Comando do Exército e no Ministério da Defesa deve ocorrer. É possível fazer alguma análise ou é algo protocolar?
Ana Penido: Cada vez mais, vai se naturalizando uma ideia de que o ministro da Defesa pode e deve ser um militar. Quando o Ministério da Defesa é criado, é para, essencialmente, escalar um civil. O que motiva essa ideia principal é o fato de existirem três Forças, a Marinha, o Exército e a Aeronáutica. A gente quase só fala do Exército, mas a Aeronáutica e a Marinha também têm os seus ministros no governo. Na época, a divergência principal era entre as Forças. A briga era se ia ser o ministro da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica. Agora, vai se naturalizando essa ideia, o que destrói qualquer hipótese de controle civil.
Ter um ministro civil, não resolve nada, só quem está no topo. Você pode continuar tendo toda a estrutura militar que foi o que aconteceu. A maior parte do tempo, desde que se criou o Ministério da Defesa, a gente nunca teve, por exemplo, um concurso para civis no ministério. Mas, é simbólico, e, ao mesmo tempo, é quase como se fosse o primeiro passo, uma primeira medida para ter um controle civil sobre os militares, é ter um ministro da Defesa civil. A segunda coisa é que se confirma essa predominância do Exército. E a nossa hipótese é que isto deve ter algum grau de ruído, então como que as outras forças vão receber isso e minorar esse grau de ruído a gente ainda vai ter que ver nas cenas dos próximos capítulos.
Rodrigo Lentz: O general Marco Antônio Freire Gomes, cotado a ser o novo comandante do Exército, estava comandando o Coter, que é o Comando de Operações Terrestres, responsável pelas inspetorias gerais, que supervisionam as polícias militares. Isso ocorre num ano eleitoral, o que também pode vir a favorecer o Bolsonaro em relação à mobilização eleitoral dos militares estaduais em torno da candidatura.
Como a influência dos Estados Unidos entra no dossiê?
Ana Penido: A questão dos Estados Unidos é central no dossiê. Acho que vale um comentário, porque houve muita especulação na imprensa sobre o posicionamento dos militares sobre a guerra na Ucrânia. Não pode haver nenhuma dúvida de como as Forças Armadas brasileiras estão alinhadas com os países da OTAN. Isso não é uma coisa de cinco anos. Isso não é uma coisa do governo Bolsonaro com o Trump. Isso é uma coisa do século inteiro.
Edição: Rodrigo Durão Coelho