Cultura: Queremos formar ou apenas colaborar na reprodução de um sistema?

A cultura enquanto legislação institucionalizada e instalada em instâncias estatais (federal, estadual e municipal) é muito recente na história do Brasil. Inaugurou-se primeiramente na chamada “Era Vargas” com a invenção do SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), vinculado ao Ministério da Saúde e Educação e foi ganhando novos contornos com o passar dos anos.

Após a criação do Ministério da Cultura e de diversos institutos, fundações, conselhos, secretarias e leis para área da cultura, será que conseguimos criar no Brasil uma estrutura sólida, funcional e eficaz para a formação de público consumidor e produtor de cultura?

Na cidade de Ourinhos-SP durante o começo deste mês surgiu um pequeno debate a respeito de um “palco alternativo” (para concertos musicais) instalado em uma das maiores feiras agropecuárias (FAPI) do interior do Estado de São Paulo que ocorre neste município sazonalmente há 50 anos.

Esse espaço foi idealizado pela Secretaria Municipal de Cultura da cidade para servir como opção diferenciada (por isso ser chamado de “alternativo”) para aqueles e aquelas que não se interessam em ouvir os sertanejos universitários dentre outras mercadorias gestadas pela indústria cultural brasileira contemporânea.

Para os que defendem o “palco alternativo”, a linha argumentativa segue no caminho de que o mesmo, para além de oferecer outro tipo de entretenimento, auxilia também na formação de outros públicos consumidores de cultura. Neste ano quem esteve em cena foi a cantora de MPB, Maria Gadú, trazida pelo Circuito Cultural Paulista (Governo do Estado de São Paulo), ou seja, com um repertório totalmente diferente do comumente tocado no recinto “fapiano”.

Os que são contra, arguem que o público consumidor de MPB, em sua grande maioria não frequenta a FAPI (feira agropecuária) e que por isso, a apresentação da cantora aqui mencionada deveria ocorrer em outro espaço, para realmente ser um local “alternativo” ao mass media. Neste mesmo mês, tivemos na cidade de Ourinhos a companhia de Dança de Deborah Colker (Rio de Janeiro), e o Diretor Executivo da mesma fez referência de que o evento trazido por eles colaboraria diretamente na formação de público/plateia.

Será que uma hora ou duas horas tanto de MPB ou de dança contemporânea, ou de qualquer outro tipo de manifestação cultural que seja, ao ser ofertada à população, poderia isoladamente e milagrosamente “converter” ou “ampliar” o arcabouço simbólico de qualquer pessoa, a ponto de no dia seguinte a sua vida ser modificada completamente através de novas interpretações acerca da realidade?

Talvez os que responderem “não”, poderiam ser rotulados de pessimistas e generalistas que ignoram as pequenas transformações pontuais que ocorrem em nosso cérebro e que afetam paulatinamente os nossos hábitos. E em relação aos que gritassem “sim”, poderiam ser estereotipados como ingênuos e pouco reflexivos, já que acreditariam praticamente em uma absorção por “osmose”. É óbvio que as divergências e convergências não param por aqui.

Isaura Botelho Guimarães, doutora em ciências da comunicação pela USP, ao estudar o caso do Ministério de Cultura Francês e as políticas públicas de formação de público, constatou que pouca diferença fazia se os ingressos aos concertos musicais, teatros, cinema, dança e museus fossem gratuitos e subsidiados pelo governo, se concomitantemente não houvesse uma política pública que envolvesse a educação e demais áreas de ação governamental.

O resultado da pesquisa evidenciou que em dez anos não houve aumento desse público consumidor, restringindo o impacto desses subsídios governamentais a somente 10% da população francesa, as mesmas que já compartilhavam desses valores. Segundo Pierre Bourdieu, se não houver a inserção de hábitos que favoreçam à ampliação das referências culturais, somente se beneficiarão desses eventos uma pequena elite já moldada e adestrada a essas modalidades de representação simbólica (cultura).

Assim sendo, como poderíamos então formar um público consumidor de cultura? Tanto em âmbito federal, estadual ou municipal, as políticas públicas devem ser projetadas a longo prazo, unindo, no caso federal, vários ministérios, e em esfera estadual e municipal, diferentes secretarias. Não somente isso, caberia também ao poder público viabilizar a circulação de outros bens simbólicos nos meios de comunicação de massa (TV, Rádio, Jornais, Revistas e Internet), regulando-os através de leis específicas que viabilizassem a abertura destes à representação da plural, diversificada e desigual sociedade brasileira. Geralmente o discurso midiático é uníssono e pouco democrático. É um espaço público confinado nas mãos de grandes conglomerados capitalistas e reacionários.

Não adiantaria nada um aluno ou aluna aprender sobre a estética musical de Mozart ou Cartola, se não tiver a possibilidade de imergir nesta paisagem sonora cotidianamente. Um consumidor de sertanejo universitário foi direcionado a apreciar o gênero através da televisão, da rádio, de festas, de conversas dentre outros fatores. Ele não brotou do zero, nem muito menos de um contato esporádico e rápido.

André Rodrigues da Silva é licenciado em História, trabalha com cultura e adora tocar bateria.

Se quisermos formar público consumidor de cultura, há de existir uma estrutura ampla que permita inserir esses novos hábitos no cotidiano das pessoas, tanto nas escolas, praças, televisões, rádios locais e etc. Sem controle, prospecção e objetivo, continuaremos a patinar em planos e ações que muitas vezes são dispendiosas aos cofres públicos, não oferecendo considerável retorno social à iniciativa proposta. Queremos formar ou apenas colaborar na reprodução de um sistema?

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