A sedução do discurso violento – por Luiz Bosco
por Luiz Bosco*
O apelo do discurso odioso e fascistóide que tem se disseminado entre nós e aparece de maneira clara na carta deixada pelo autor do massacre de Campinas está calcado em questões que dizem respeito a todos nós. Simplesmente não dar ouvidos às queixas a que esse discurso responde tem sido um dos nossos piores erros e dá margem para que sua força aumente.
Escrevo isso quatro dias depois da chacina em Campinas. Foi um ato inaceitável, desumano, atroz, impensável em um mundo que se diz “civilizado”. O que me impele a redigir esse esboço da psicologia do fascista contemporâneo vem do incômodo com algumas afirmações: 1) de que o homicida seria louco. Os loucos são tão perigosos quanto os “não-loucos”, e não podemos fechar os olhos a questões sociais concretas envolvidas no episódio. Atribuir responsabilidade total ao indivíduo e negar o contexto social em que vivia, ignorando suas palavras na carta de despedida, leva a distorções sérias. 2) Ao se levar em conta o contexto social e seu discurso, têm-se preocupado em escorraçar o que há de machista, misógeno e reacionário, o que está correto até certo ponto. É preciso preocupar-se com o que há na carta do homicida/feminicida que provoca “empatia”, que faz com que pessoas se identifiquem com o ato brutal e passem a considerá-lo não como uma violência, mas como gesto de desespero.
Todos nós estamos abandonados pelo sistema social vigente. Percebemos que pagamos impostos demais e que esse dinheiro não retorna a nós em melhorias das cidades em que vivemos, em serviços públicos decentes e em garantias frente nossa vida laboral instável.
Queremos desabafar nossas angústias por trabalharmos à exaustão e não conseguirmos pagar as contas. Ofende-nos termos que nos enfiar em transportes públicos sucateados e vermos “os corruptos” em carros blindados caríssimos. Dói suportar a crueldade de uma vida em que se esforça tanto para conseguir muito pouco. É preciso gritar, mas não há coragem nem ânimo para fazê-lo, e se houvesse, não haveria quem escutasse.
A dor do homem comum não aparece na televisão e ele sente ódio. Ninguém o ouve e ele procura desabafar suas misérias na companhia da cachaça; sente uma inquietação catártica quando programas sensacionalistas falam as verdades que ele queria dizer. Sente-se acolhido nas inúmeras igrejas que se espalham pelo seu bairro e que dão conforto emocional, enquanto prometem a riqueza material.
Quando se depara com pessoas e instituições preocupadas em proteger e amparar aos outros, não a si mesmo, sente-se traído e humilhado. “Preocupam-se com a mulher, com o negro, com o gay, mas e comigo? Trabalho, sustento meus filhos, sou honesto, como o pão que o diabo amassou, e ninguém vem defender meus direitos.” Fica mais difícil ainda de engolir quando se vê na televisão pessoas defendendo bandidos e acusando policiais que “apenas fizeram seu trabalho”.
Ao voltar para casa, encontra a esposa, cheio de ódio por “os corruptos” roubarem sua vida; mordido pela inveja por ver suas dores sendo esquecidas enquanto “minorias” e “bandidos” vivem cheios de “privilégios”; sem poder fazer nada por ser a ponta mais fraca da corrente. Ela, ao menos, deve respeitá-lo. É “sua” mulher, sua posse, ela quem deveria consolá-lo, fazer suas vontades para amainar a amargura da vida que sofre.
Contudo, a “sua” mulher tem vontade própria. Já não se contenta em cuidar da casa e dos filhos, quer poder de consumo, quer trabalhar fora, quer ser independente. Parece não reconhecer os inúmeros esforços que o bom homem faz. É uma ingrata. Está cheia de ideias feministas na cabeça e isso a afasta da família, de “seu” homem, de seus filhos, de sua fé. O ódio aumenta.
Todos sofremos as agruras de uma vida insatisfatória, em que percebemos que somos explorados e vilipendiados de nossas próprias forças e de nosso tempo. O que não enxergamos são os verdadeiros responsáveis por isso.
O homem comum não vê que o trabalho lhe toma o melhor de seu tempo e disposição para dar em troca muito pouco. “Os corruptos” existem, mas eles são parte de um sistema social em que corromper e ser corrompido é a regra. Exploram conscientemente a todos nós e nos distraem com propaganda, noticiários, programas e mais programas de televisão, filmes, internet e celulares, para que não vejamos a verdadeira raiz de nossos males. Fazem com que acreditemos que o maior bem a se almejar é a riqueza e que quem a possui, o fez por mérito próprio.
Não mostram a hipocrisia, os conchavos, os privilégios e as mentiras que toda forma de riqueza engendra e da qual depende diretamente.
Na cegueira da opressão, as adições (vícios) são um buraco escuro no qual uma pessoa se enfia, tentando esconder seus ferimentos de si mesma e não olhar mais nada, vivendo entorpecida para que a realidade se mantenha distante.
Outros, admiram os discursos messiânicos de sensacionalistas e religiosos, que, em seus ternos caros e retórica direta, traduzem os desejos de reconhecimento e luxo.
As “pessoas de esquerda”, aquisição recente do vocabulário do brasileiro médio, não ouvem aos apelos do “homem comum”. Com seus discursos complicados e sua empáfia, parecem querer fazer as pessoas engolirem suas verdades, enquanto dão atenção “apenas” a gays, negros e mulheres. Por isso, fala-se da sensação de que “agora, tudo é preconceito”. “Eles” estariam conquistando espaço enquanto o “homem de bem” continua humilhado.
O “cidadão de bem” sente que não há tempo para exercícios intelectuais que parecem servir apenas para prolongar seu sofrimento. Quer resultados imediatos, quer soluções que possa entender. Quer a eliminação definitiva daqueles que parasitam seus esforços, daqueles que apenas reclamam enquanto ele, honesto e trabalhador, desgasta sua vida no trabalho.
Esse indivíduo cansado e cheio de ódio só precisa de uma fala, um gesto, um símbolo, um rosto que condense tudo que está sentindo, para dar luz a um monstro que está dentro de todos nós: o fascismo.
Quando chega a esse ponto, todo o ódio represado, toda potência cerceada, descarrega-se nas ações violentas. A partir daí, todos os que viveram de “privilégios” enquanto o “cidadão de bem” sofria, irão receber seu quinhão. Vamos além: deverão ser eliminados, para que nunca mais tomem espaço nem dilapidem recursos com sua “preguiça” e seu “vitimismo”.
O monstro está em todos nós, latente, pois todos sofremos a exploração imposta pela sociedade capitalista e somos constantemente subjetivados, educados, adestrados, disciplinados, controlados, para crermos que esse é o melhor sistema de todos; que ser um explorador da miséria alheia é algo desejável. A mídia, as igrejas e os poderosos dizem que se as coisas não correm como queríamos é porque nos falta esforço. O “homem comum” percebe que nos esforçamos, sim, e muito. Logo, o problema está no “corrupto” e em todas essas “minorias” que não querem se esforçar, querem apenas benesses, e parasitam o que produzimos.
Todos sofremos as consequências de um sistema mantido em funcionamento para o benefício de muitos poucos, mas não enxergamos isso. Não existem “minorias” recebendo “privilégios”. Existem grupos historicamente oprimidos que vivem uma defasagem concreta de direitos, de autonomia social e com acesso precário ao mundo econômico.
O que acontece é que “dividir para reinar” ainda é bastante eficiente. Rachar os trabalhadores em “eles” e “nós” enfraquece a luta contra os verdadeiros adversários e dificulta a elucidação dos mecanismos que nos prendem.
Compreender essas questões não é tarefa simples, pois vai contra valores que foram inculcados em nós desde o momento em que nascemos. É preciso uma ação didática, pedagógica, que se aproxime da realidade concreta, que apresente estratégias coerentes de transformação. Enxotar e humilhar o brasileiro comum o empurra a identificar-se cada vez mais com os profetas do neoliberalismo e afastar-se mais e mais daqueles que sofrem tanto quanto ele e que, na verdade, são seus companheiros de luta contra um sistema injusto e desigual. A maioria dos brasileiros são conservadores – falo isso sem estatística, mas sem medo de errar. Se colocarmos na mesma categoria o brasileiro médio e o reacionário violento, não conseguiremos construir diálogo e perderemos a batalha contra o fascismo.
*psicólogo, professor e escritor