Coluna: Weber Carvalho — As nossas brigas de galo
Nessa minha primeira aparição no Contratempo quero convidar o internauta a participar, refletindo junto à moral da história.
Tenho viajado por esse mundão todo, coletando fábulas e contos. O uso dos contos é antigo e sua força cruza a cronologia do conhecimento humano; a ciência ganhou espaço, mas o saber oral permanece no moderno mais forte que nunca e percebemos a realidade imitando a ficção ou, talvez, apenas a história se repetindo.
Vou trazer todo mês um conto e tentar fazer possíveis leituras da nossa sociedade através deles.
O primeiro é um conto que escrevi em Santana de Parnaíba explicando a origem do seu carnaval. A métrica traz como referência as quadrinhas de samba e o conto é de origem popular e relato construído com mestres, moradores e batuqueiros.
Vamos ao conto, no final dele apresento a metáfora com a nossa realidade, boa leitura e até já.
Pequena cidade a margem do grande rio Tietê, que hoje é sujo, mas já foi limpo. É muito provável que nessa história que conto, todos navegavam, pescavam e até comiam o peixe desse rio. Foi nesse tempo não muito distante, que acontecia a abolição. Era o fim da escravidão.
Agora todos tinham os mesmos direitos; quem tinha muito, podia ter mais e aqueles que nada tinham, continuavam sem ter. Isso tudo porque não foi dada nenhuma oportunidade a população negra que agora era livre, mas continuava marginalizada, era esse o retrato dessa camada da sociedade brasileira.
Uma coisa muito forte que acabou por caracterizar a força dos negros era a religião, talvez por terem que recorrer sempre a seus Orixás, sua religião prosperou mesmo tendo que encontrar formas diferentes de se manifestar, devido ao preconceito dos brancos, suas divindades passaram a ser representadas também pelos santos católicos.
A cada ano, os negros se apropriavam das festividades católicas, associando seus Orixás aos santos. Em pouco tempo, boa parte das festas católicas eram organizadas por negros, que foram assumindo aos poucos essas festividades. Se de um lado a força religiosa do negro era forte, encontrando no catolicismo abertura para inserir seus deuses, o seu lado profano era ainda mais emblemático, os negros organizavam as festas mais acaloradas e animadas. O carnaval no Brasil é um antes, e outro depois da entrada dos negros com seus batuques e danças, a festa pagã era a preferida entre negros e brancos.
Essa é a história de um carnaval e foi na cidade de Parnaíba que viveu o negro de nossa história. Era Seu Quirino, ele quem reunia um grupo de negros, bumbos e caixas e alegravam o carnaval com sua batucada. A festa lembrava o fim da quaresma e a chegada do carnaval, festa onde branco e negro se juntavam para festar e fazer coisas que só são permitidas no carnaval.
Em um desses carnavais, chegou na cidade o negro Henrique Preto, ele e outros trabalhadores que vieram para construção da barragem. Henrique Preto era cozinheiro e rapidamente se tornou conhecido pelos doces que fazia, ele chegava de Minas pra também tentar a sobrevivência em Parnaíba e trabalhava na barragem do progresso.
Ao conhecer o carnaval de Parnaíba ele se encantou e acabou por se tornar um grande amigo de Seu Quirino, tanto que no carnaval seguinte participou e animou as ruas da cidade com o grupo Galo Preto. O grupo quebrava o silêncio e colocava a cidade em efervescência. O carnaval era a festa paga mais querida do parnaibano e do brasileiro.
A Festa era bonita e cruzava a noite toda. Já cansado de tanto tocar Henrique Preto resolveu passar o bumbo a outra pessoa, e sem pensar muito entregou o bumbo a um homem branco. Nesse instante o samba parou! Seu Quirino então tomou o bumbo do homem branco e passou para um outro negro.
Aquilo tinha deixado Henrique Preto profundamente magoado, ele também tinha amigos brancos, mas, ainda assim, entendia a postura do seu amigo em querer preservar o samba de bumbo feito apenas por negros. Mas um dia, ele resolveu convidar os brancos para uma noitada em sua casa, e como toda boa noitada acaba em batucada, ele acabou por deixar os brancos participarem e foi uma alegria só. Os brancos se envolveram muito e por alguns instantes puderam esquecer que entre brancos e negros havia um poço enorme que foi cavado durante séculos.
Seu Quirino, quando ficou sabendo da batucada não conseguia acreditar que Henrique Preto tinha deixado os brancos tocarem os bumbos e caírem samba!
Seu Quirino não admitia ter brancos no Samba do Galo Preto e colocou Henrique Preto para fora do grupo. Henrique Preto tentou convencer Seu Quirino, mas foi inútil, a briga e a provocação só aumentou entre eles.
A cidade novamente estava dividida! Henrique Preto resolveu montar seu grupo e estava disposto a construir os seus próprios instrumentos e se preparar para foliar no Carnaval. E assim o fez, junto com alguns amigos negros e brancos, criou o grupo Galo Carijó.
Quando seu Quirino ficou sabendo da audácia ficou inconformado. Para ele era desaforo! Como um negro podia se juntar aos brancos para fazer aquilo que era dos negros? Era desrespeito.
Seu Quirino não deixou barato, reuniu seu grupo e armou uma boa ao grupo de Henrique Preto. Quando o novo grupo chegava com o samba na rua onde morava Seu Quirino, os negros começaram a jogar ovos e farinha, deixando todos brancos. Foi uma confusão total, Henrique preto estava branco de farinha. O grupo foi ridicularizado e todo mundo se referia ao samba como sambinha e ao Galo Carijó como Galisé.
Mas Henrique Preto disse que a volta estava prometida e seria em grande estilo. O pessoal dele esperou até o próximo Carnaval e quando o Galo Preto se aproximava da rua do Henrique Preto, negros e brancos arremessaram pratos, pedras e tudo aquilo que foi encontrado. Além disso, encurralaram os negros, que apanhavam e batiam, mas devido à cilada, tiveram que sair correndo com os bumbos. Não deu outra, o grupo do Henrique Preto passou a cantar a seguinte quadrinha para o Galo Carijó:
Eu tenho pena
Eu tenho dó
O Galo preto
Apanha do Carijó
A confusão só aumentava e os grupos se pegaram novamente nas ruas. O policiamento da época não era o bastante para conter as brigas que continuaram mesmo com o fim do Carnaval.
Todo cuidado e preocupação para o próximo carnaval. Muitas famílias tinham parentes dos dois lados, primos e irmãos divididos pelo samba, uma situação que nem mesmo o Padre, conseguia interceder.
O Carnaval estava chegando novamente, e o que nos anos anteriores era motivo de alegria, neste parecia ser bem diferente. Para um dos grupos aquele seria o último carnaval.
A cidade era muito pequena para dois grupos. Assim, definiram que um duelo seria marcado e o vencedor tocaria no carnaval, ao derrotado, restava recolher suas coisas e festar em casa. As ruas teriam espaço apenas para um grupo. O grupo vencedor do Duelo!
A coisa era tão feia que a funerária da cidade já tinha encomendado mais alguns caixões na capital para dar conta do que poderia acontecer.
Tudo preparado o duelo foi marcado para as seis horas no Morro do Cruzeiro.
Seria iniciado só depois da oração da Ave Maria.
Chegado o grande dia do Duelo, todos aguardavam em suas casas, as famílias rezavam, alguns tinham ficando na igreja aguardando em vigília pelas almas dos mortos no duelo. Silêncio que foi destruído pela oração da Ave Maria.
Pronto! Os dois grupos se encontraram, Henrique Preto e Seu Quirino estavam ali frente a frente pra resolver a briga deles e também a briga que agora era entre negros e brancos.
O silêncio voltou a invadir o início da noite, e todos esperavam o pior. Na Igreja o Padre já tinha colocado seu traje para a extrema unção. Os comerciantes fecharam e todas as casas com as portas e janelas trancadas. A cidade parecia agora estar abandonada, tamanho o silêncio… um silêncio que fazia barulho por dentro de todos os moradores, que esperavam o pior.
Quando então surgi um primeiro batuque, tac, tatac, acabou alguém venceu!
Tac tatac – pronto! Quem perdeu? Quem morreu? Será que pouparam os mais velhos de algo?
– Talvez o Galo Preto tenha vencido mostrando de quem é o samba, para os brancos ou então foi o Galo Carijó que venceu e conseguiu acabar com hegemonia negra no samba?
Tudo era possível, as mulheres e as crianças rezavam sem parar, para confortar quem morrera e pediam perdão para quem pecou matando.
O Tac Tatac aumentava e alguns moradores ameaçavam sair de suas casas e outros já estavam na rua comemorando a vitória de um dos grupos, um homem negro saiu gritando que aquele batuque era coisa de Galo Preto e já estava mangar de um homem branco.
– Veja Polaco é impossível não identificar a força de um Bumbo que vem das mãos de um homem negro!
Mas outro homem, agora branco, também saiu a rua e reivindicou o samba pra si. – Isso tem força de dois povos, tem dedo de branco nesse samba também!
Foi aí que a população começou a sair percebendo que o duelo tinha chegado ao fim e agora só restava conhecer o vencedor e confortar o derrotado.
Toda a população já estava na rua aguardando o grupo vencedor então apontou na entrada da cidade e já dava pra ver de longe o estandarte do grupo vencedor. Era o estandarte do Galo Carijó. Que surgia iluminado pelas tochas de fogo, mas para todos, a grande surpresa! Quem carregava o estandarte não era o Henrique Preto, era Seu Quirino.
Quando então, um segundo estandarte aparece no meio, era o Estandarte do Galo Preto, e quem surgiu com ele, era Henrique Preto.
As pessoas não conseguiam entender o que tinha acontecido, só mesmo quando eles se aproximaram todos perceberam que os entravam juntos na cidade.
Não houve briga, houve dialogo. E para a surpresa e espanto de todos, os grupos se juntaram e formavam agora um só bloco, um só grupo, que chamaram de Grito da noite.
Naquela noite o carnaval da cidade estava aberto e o ato voltaria acontecer outras vezes.
Naquele Carnaval houve trégua, negros e brancos se juntavam para sambar e agora o samba negro conseguiu reunir o que por séculos ficou separado.
Toquei, toquei
Enchi minha mão de calo!
No morro do cruzeiro
Tá tendo briga de galo!
Este Conto nos ajuda a perceber o quanto é perigoso quando dois grupos que defendem interesses semelhantes se colocam em posições antagônicas. Assim como o negro Quirino queria impedir a participação dos brancos pelo medo da descaracterização daquele feitio, o outro negro Henrique Preto junto com outros homens brancos queriam a democratização desse fazer, mas com um porém incorporando a realidade da época, o samba poderia juntar a todos. Alguns acreditavam nisso e Henrique Preto era um deles. Diferentes motivações, quem está certo ou quem está errado? A história e a estória mostrou que se juntaram e o samba globalizou. Na interpretação do ponto de vista de Quirino, sim o samba perdeu características e vem perdendo, aos poucos vai ficando mais distante da sua origem ancestral, mas o que seria desse samba se ele não tivesse tomado as ruas da cidade e do país? Porque sim, ele tomou a rua e o corpo do brasileiro. Não sem muita resistência de uma classe dominante, mas aos poucos essa força ancestral se tornou elemento essencial da identidade brasileira.
O samba se tornou um dos elos dessa união, de um povo inventado na Europa, mas esculpido nas duras contradições diárias de seu povo, que deixou que o samba cantasse o seu tempo. Bom ver que no final Seu Quirino cedeu as mudanças do seu tempo, e talvez esteja ai o maior ensinamento dele nesse conto, foi bom também ver ele participando dessa mudança, ainda que não tenha impedido o samba de se descaracterizar, tornou-se possível ele continuar existindo. Do outro lado, Henrique Preto, nunca abandonou seu lugar de protagonista dessa história, um negro que é inspiração a todos os brasileiros, por acreditar no outro, mesmo tendo todos os motivos para duvidar, e até mesmo contradizendo muitos dos seus, acreditou em uma sociedade sem classes, sem gênero, sem raça, sem idade, uma sociedade apenas humana, ainda que a história o faça duvidar.