Artigo: “Lembrar para não repetir” Por Luiz Bosco
Há trechos para os quais nos recusamos a olhar, pela dor que nos causam. Pensamos que ignorá-los poderia simplesmente exorcizar a sua lembrança. Porém, isso não os apaga, apenas cria um ponto cego em nossa existência, uma parte de nossa percepção que faz parte dela, mesmo que nossa ação no mundo diga que não.
Dessa ignorância, parcialmente deliberada, vem os vultos, recordações fantasmagóricas nas beiradas da percepção. Atribuímos um mal indefinido a isso e nos arrepiamos, sem questionar quais mortos mal enterrados, quais temas mal resolvidos, estão evocando tais espectros.
Podemos passar novamente por um trecho já percorrido? Ele já não será o mesmo, nem o corpo que o percorre, mas é possível, sim, submeter-se a circunstâncias que se repetem, principalmente se nos recusamos a ter ciência delas.
A memória é matéria, assim como os passos na trilha o são: marcas de um corpo na terra, dando e recebendo moldagem. Os pés marcam o chão e o solo enforma os pés.
Uma nação inteira vem percorrendo caminhos violentos desde que arbitrariamente foi formada – a própria ideia de uma nação é uma violência. O Brasil vem do massacre dos povos originários, da escravização de povos africanos trazidos à força, da exploração implacável de trabalhadores e trabalhadoras, de uma infinidade de violações, incluindo o período de 1964 a 1985, que foi, sim, com todas as letras, uma ditadura civil-militar.
Não podemos, em nome de afugentar assombrações, ignorar as mortes e a dor; é correr o risco de dar-lhes novo corpo. Deixar de condenar explicitamente o golpe iniciado em 1 de abril de 1964, em nome de uma conciliação frágil e duvidosa, não nos dá nenhuma segurança frente a forças que demonstraram recentemente não dar a mínima para a democracia.
É desagradável olhar para trecho tão vil de nossa jornada, mas é necessário para que não nos percamos no caminho e acabemos por reviver esse período execrável, indigno de quem realmente defende a vida e a liberdade.
1964 nunca mais!