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ERA DE CHUMBO: Repórter, profissão perigo.

ERA DE CHUMBO: Repórter, profissão perigo.

O exercício da profissão de jornalista profissional envolvia riscos no regime dos generais (1964/85).
O jornalismo, uma profissão técnica, constituída por autodidatas – os melhores profissionais não tinham diploma universitário – era essencialmente desenvolvida na prática, no corre-corre do cotidiano, no calor dos acontecimentos.
Assim é que, professores, advogados, bancários, servidores públicos e liberais, de texto razoável e relativa cultura geral, tornavam-se repórteres, copidesques (revisores) e editores nas redações de jornais, revistas, rádios e televisões.
Este quadro foi alterado com a regulamentação profissional do regime militar, em 1969, que instituiu a chamada lei dos dois terços, que reservou espaço no mercado de trabalho para estudantes estagiários de jornalismo.
Graças a isso consegui meu registro profissional provisório através da orientação de Robson Moreira, então presidente do outrora influente Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo.
O fato é que, nos tempos de censura e autocensura nas redações, “para ser jornalista e ter trânsito livre entre os encarregados da repressão (política), somente sendo da casa, ou seja da própria polícia”.
É desta forma que o respeitado jornalista e escritor Percival de Souza, meu nobre companheiro desde os tempos do revolucionário Jornal da Tarde (JT) nos anos 70, relembra a profissão em Autópsia do Medo – Vida e Morte do Delegado Sérgio Paranhos Fleury (Ed.Globo, 2000, pg 239).
“O Sistema pensou em tudo, inclusive nesse detalhe”.
“Para os jornalistas que não seguiam o script, aplicava-se a elástica Lei de Segurança Nacional”.
“Uma notícia fora desse roteiro significava prisão ou processo”.
“Foi o que aconteceu com Orlando Criscuolo, do Diário da Noite, que foi fazer a cobertura normal do caso de dois jovens executados em plena rua, á luz do dia”.
“O Jornal publicou a matéria sem saber que havia uma nota oficial ordenando que aquele caso, embora não faltassem testemunhas, deveria ser contado apenas como “atropelamento”.
A rotina repressiva inventava “fuga”, “atropelamentos”, “suicídios”, para as vítimas comuns executadas pelo Esquadrão da Morte e para os delitos políticos dos adversários do regime.
Neste ponto, adicione-se um ingrediente típico da época: Criscuolo era apolítico, um formador de opinião alienado em meio á massa de leitores, indiferente aos rumos políticos e sociais do País.
A exemplo dele, José Carlos de Morais (Tico-Tico), famoso repórter da TV Tupi – a Globo da época-, Carlos Spera e tantos outros antigos profissionais.
A militância política ou a emissão de opinião divergente era encrenca certeira.
Ontem, como hoje, os comunicadores temem perder seus empregos, posição social e privilégios.
Criscuolo, dublê de repórter policial e comerciante, era brasileiro de terras, “tinha fama de vender terrenos de difícil localização”.
O Diário da Noite, carro-chefe dos Diários Associados em São Paulo, “seguia regras próprias se atuação” e empregava policiais, informantes e amigos dos diretores.
É imenso o folclore a respeito.
“O advogado do repórter levado para a Polícia Federal e enquadrado,abruptamente, na Lei de Segurança Nacional conseguiu libertá-lo com um argumento insofismável”.
“Procurou o general que chefiava os federais em São Paulo, Sílvio Corrêa de Andrade, mostrou-lhe um exemplar do Código Penal (…) e argumentou: general, até que o senhor pode enquadrá-lo em alguns artigos deste Código, mas … por subversão não dá!”.
Este caso exemplar ilustra a aberração que ocorre neste século XXI: cidadãos presos, torturados e humilhados na Era de Chumbo, inocentes ou não, indiciados por crimes comuns e não por motivação política, posam de perseguidos políticos daquela época, para obter indenização do Estado.
Quantas versões contém a verdade?
A farsa, o oportunismo e a fantasia prevalecem no País do Carnaval.
O caso do repórter Criscuolo, claro, virou piada.
Porém, reforçou o lema da época de chumbo: “seguir o roteiro oficial e nada, mas nada mesmo,a mais”.

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