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“Medida Provisória”: Distopia e Catarse

“Medida Provisória”: Distopia e Catarse

Por Bruno José Yashinishi

Distopia é uma palavra originada do grego e significa “lugar anormal” ou “lugar ruim”. Na Literatura, o termo é empregado se referir a obras ficcionais geralmente futuristas e contextos apocalípticos, onde a sociedade é regida por governos autoritários, há o cerceamento das liberdades individuais e a tirania das novas tecnologias sobre a vida humana.
Obras como “Admirável Mundo Novo” (1932) de Aldous Huxley; “1984” (1949) de George Orwell; “Fahrenheit 451” (1953) de Ray Bradbury; ou “Laranja Mecânica” (1962) de Anthony Burgess são alguns dos exemplos mais célebres de distopias no campo literário. O cinema também é repleto de tramas distópicas muito conhecidas, como “2001: uma odisseia no espaço” (1968), de Stanley Kubrick; “O planeta dos macacos” (1968), de Franklin Schaffner; “Mad Max” (1980), de George Miller, entre outros.
Mais recentemente, com a proliferação dos streamings, as distopias são largamente exploradas por séries como “Black Mirror” (2011-2019) criada por Charlie Brooker; “The Handmaid’s Tale” (2017-2021) criada por Bruce Miller e adaptada do também distópico romance “O conto da Aia” (1985), de Margareth Atwood, ou ainda “Expresso do amanhã” (2020 -2022) criada por Josh Friedman e Graeme Manson.
Embora sejam bem diferentes entre si, esses exemplos têm em comum sociedades futuras nada esperançosas, com forte opressão política em alguns casos e de uma permanente sensação de medo e insegurança frente a situações aparentemente absurdas, mas que geram desconforto pelo efeito de verossimilhança com acontecimentos atuais do cotidiano.
Na verdade é justamente esse desconforto que caracteriza o âmago de uma distopia. A intenção de uma obra distópica não é simplesmente aterrorizar seus leitores e espectadores, mas antes despertar um efeito reflexivo e de catarse. O termo grego kathársis, traduzido como catarse, significa purificação ou purgação.
Ao discorrer sobre as tragédias gregas, o filósofo Aristóteles apontava que, além de suscitarem reflexões sobre o caráter e destino humano, as obras trágicas também seriam capazes de promover a purificação das paixões, estimulando a catarse. O efeito da tragédia consiste em amenizar emoções extremas, como o temor ou a compaixão, pelo equilíbrio entre a identificação do espectador com a condição da personagem representada ou ainda pelo distanciamento em relação ao drama enfrentado por ela na representação trágica. Nesse sentido, o espectador não seria vítima da tragédia, mas sim contemplaria a imagem de uma, o que possibilitaria o aprendizado sobre a condição e destino dos seres humanos.
Pois bem, distopia e catarse são dois elementos fundamentais presentes no novo filme nacional “Medida Provisória” (2022), que após vários adiamentos e até mesmo o boicote por parte do governo federal, finalmente estreou nos cinemas e já vem ganhando notoriedade, tanto por parte da crítica quanto do público. Adaptado da peça teatral “Namíbia, Não!” (2011), de Aldri Anunciação, o filme é dirigido pelo ator Lázaro Ramos, que também estreia como diretor.
A trama se passa no Brasil, em um futuro próximo, onde o governo pretende promover uma grande reparação histórica pelos séculos de escravização dos negros e resolver definitivamente os problemas do racismo no país. Para tanto, no dia 13 de maio é sancionada a medida provisória 1-8-8-8, que determina a deportação de todos os cidadãos com “melanina acentuada” (termo usado pelo próprio governo para se referir aos afrodescendentes) para o continente africano, a fim de “devolvê-los às suas origens”.
O advogado Antonio (Alfred Enoch), sua companheira Capitu (Taís Araújo) e André (Seu Jorge), que são negros, formam um movimento de resistência a essa imposição governamental, que por sua vez, causa uma extrema convulsão social e desencadeia diversas situações que evidenciam a profunda desigualdade racial no Brasil, representadas de forma dramática e cômica ao decorrer da trama.
O longa metragem de Lázaro Ramos é repleto de referências implícitas ou explícitas em sua narrativa sobre a questão negra no Brasil. A própria medida provisória, por exemplo, remete a 13 de maio de 1888, data oficializada como a abolição da escravatura através da Lei Áurea. Personalidades negras como Machado de Assis e Luis Gama são referenciadas nas entrelinhas da trama. Músicas de Elza Soares, Cartola, Baco Exu do Blues, entre outras, compõem a trilha sonora e a enriquecem de simbolismo.
A catarse promovida pela distopia do filme implica a necessidade de se repensar o que o sociólogo Florestan Fernandes em sua obra “A integração do negro na sociedade de classes” (1964) considerou como um “desajustamento estrutural” da sociedade brasileira, ou seja, a marginalização social dos negros mesmo após o fim da escravidão. Como herança maldita do passado escravocrata, o racismo velado e estrutural desmitifica o caráter harmônico das relações raciais no Brasil e evidencia as desigualdades entre negros e brancos, que ideologicamente mantém os antigos padrões de dominação racial.
Enfim, “Medida Provisória” é um filme incômodo, mas necessário. Dialoga não só com o passado representando o futuro, mas principalmente com a atualidade.

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